O Blog Eclética teve alguns imprevistos, por isso a postagem do capítulo está nesse blog.
A nossa Bienal Online está com tudo!!! Obrigada a cada um!!!
Você já conferiu várias entrevistas da autora e conheceu mais detalhes do livro, certo?! Agora você vai poder ler o PRIMEIRO CAPÍTULO desse lindo romance.
CRISTIANE
BROCA
Capítulo
1
Era maio de 2007. Há apenas dois
anos no mais alto posto da igreja católica, o Papa Bento XVI estava de visita
ao Brasil para vários compromissos, dentre eles a canonização do primeiro santo
nascido em terras brasileiras, Santo Antônio de Santana Galvão, popularmente
conhecido como Frei Galvão.
O
pontífice desembarcou no país no dia 9 de maio e ficou hospedado no mosteiro de
São Bento, em São Paulo. Após concluir os compromissos da capital, incluindo a
missa de canonização do santo, o Papa embarcou rumo ao interior do estado para
visitar as cidades de Aparecida e Guaratinguetá.
Aparecida,
famosa por possuir o maior santuário mariano do mundo, a Basílica de Nossa
Senhora Aparecida, cuja imagem foi encontrada por três pescadores em 1717,
estava em festa, assim como a vizinha Guaratinguetá, terra natal de Frei
Galvão, onde o Papa visitaria uma organização social que trata dependentes
químicos com foco no trabalho, convivência e espiritualidade, a Fazenda da
Esperança.
A
imprensa se mobilizou toda para cobrir o evento também no interior.
Ângela
Barros era uma jovem de vinte e um anos nascida e residente em Aparecida.
Recém-formada em Jornalismo, ela concorria a uma vaga na equipe do Vale impresso,
jornal com sede em Guaratinguetá, onde estagiava. Sua concorrente direta à vaga
era Lúcia Reis, uma jovem de vinte e dois anos, estatura mediana, cabelos
castanhos curtos, um rosto bonito e olhos pequenos e redondos.
O
jornal tinha saída semanal e contava com uma equipe de nove funcionários fixos,
mais as duas estagiárias que competiam para virar o colaborador de número dez.
Sua proprietária era Andréa Albuquerque, jornalista com boa formação
universitária e experiência adquirida na capital, que há oito anos havia
realizado o sonho de lançar seu próprio jornal em Guaratinguetá. Ela tinha
quarenta e três anos, olhos verdes e cabelo loiro com corte chanel, combinando
perfeitamente com sua figura alta e esguia.
Era bonita, inteligente e mais rigorosa do que qualquer chefe homem que
Ângela tivera antes. Sabia das dificuldades de se produzir um jornal de
qualidade com pouco capital e uma equipe restrita, por isso levava o trabalho
extremamente a sério e cobrava muito de seus jornalistas.
Ângela
e Lúcia, cada uma ao seu modo, eram boas, mas também tinham defeitos. No ponto
de vista de Andréa, elas se completavam, pois enquanto Lúcia era organizada e
confiável, Ângela era esperta e criativa. Os pontos negativos de Lúcia incluíam
a falta de visão e capacidade de improvisação, coisas que Ângela tinha de
sobra. Os problemas de Ângela eram sua desorganização e os atrasos constantes.
Andréa era sistemática e prezava muito a pontualidade. Ela nunca havia
trabalhado com alguém com tanto potencial e ao mesmo tempo tão crua quanto a
jovem. Como não podia efetivar as duas e só tinha até o fim do mês para
decidir, no momento estava ficando com Lúcia.
Às
19h do dia 11 de maio, Ângela penteava os cabelos molhados em frente ao
espelho. Á água escorria cada vez que a escova descia até as pontas, jogando
respingos por todo o lado. Ela estava com pressa e, ao penteá-los sem o menor
cuidado, arrebentava vários fios e agradecia a Deus por ter lhe dado um cabelo
liso, mais simples de cuidar do que se fosse cacheado.
Ela
olhou de relance para a cama, onde a pequena bolsa de viagem a esperava com
algumas peças de roupas, entre elas o terninho que usaria no dia seguinte.
Vestiu sua calça jeans de lavagem clara, uma camiseta branca justa, calçou seu
inseparável All Star azul-marinho e passou
gloss nos lábios. Olhando para o
espelho, julgou-se bonitinha em seus 1,70m de altura. Seu corpo era magro,
porém não muito, pois tinha curvas acentuadas nos locais certos como o bumbum
arrebitado, traço marcante das brasileiras. Ângela era definitivamente o
estereótipo da mulher brasileira: bonita, alegre e batalhadora.
Antes
de sair ela ainda se deu conta de que precisava cortar o cabelo. A franja reta
já estava na altura dos olhos, e o cabelo quase na cintura. Anotou mentalmente
aquele compromisso para a próxima semana, pegou suas coisas e foi até a sala se
despedir de seu pai. Estava propositalmente adiantada para seu compromisso
porque queria fazer algo antes dele.
— Já vai, fia? —
Francisco perguntou da forma carinhosa e interiorana que era acostumado a
falar, ou, como ele mesmo dizia, caipira.
—
Já, pai, me deseje sorte — disse ela de forma parecida. Por ter estudado, seu
vocabulário era bem melhor que o do pai, mesmo assim falava o “r” puxado como a
maioria das pessoas do interior de São Paulo.
—
Boa sorte, minha princesa — desejou Francisco, sabendo que a filha teria muito
trabalho por aqueles dias.
—
Obrigada. Vou ligar para saber se o senhor está bem e vou pedir à Malu que
passe aqui para te ver enquanto eu estiver fora, está bem?
—
Não precisa incomodar a menina, deixa ela quietinha com o maridinho dela.
—
Mas, o senhor vai ficar bem?
— Claro fia, eu tô bem hoje.
— Então está bem. Te amo, pai.
— Também te amo, fia.
Ângela
beijou o pai, pegou a filmadora que havia emprestado de um vizinho, colocou as
coisas no carro e saiu, torcendo para não se atrasar. Não estava muito feliz
pelo compromisso que a aguardava, mas precisava impressionar a chefe e não dar
a ela motivos para se zangar, já que havia se atrasado duas vezes somente naquela
semana.
Cinco
minutos depois de sair, parou o carro e caminhou em direção a um dos quatro
portões da basílica, o mais próximo à sua casa. Ela procurou um bom lugar para
ficar, fora do cordão de isolamento, de onde pudesse filmar a chegada do Papa à
sua cidade natal.
Não demorou nada e
dois helicópteros surgiram na escuridão. Em um deles estava o Papa. Eles
aterrissaram no heliporto que ficava em um morro de frente para a basílica, que
estava toda iluminada. Era uma cena linda de se ver, concluiu Ângela, observando
a beleza imponente da igreja enquanto os sinos ecoavam pela atmosfera e uma
música mariana embalava o momento. Apesar de ter nascido e morado a vida toda
ali, ela ainda se surpreendia com a beleza daquela construção.
Alguns
minutos depois da descida do helicóptero o Papa surgiu, descendo a colina da
igreja de papa móvel e acenando para as pessoas que se aglomeravam atrás dos
cordões para vê-lo. Tais cordões atravessavam a cidade até o seminário Bom
Jesus, onde ele ficaria hospedado em sua estadia em Aparecida. Foi tudo muito
rápido e Ângela ficou entusiasmada com a experiência. Era um grande
acontecimento para a cidade, que vive do turismo religioso, e para a região em
geral. Quando o papa João Paulo II visitou Aparecida, em 1980, ela ainda não era
nascida. Desta vez estava presenciando a história e, um dia, pensou, iria contar aos filhos. Não que pensasse no assunto
o tempo todo. Queria ter uma família algum dia, mas a sua prioridade no momento
era crescer na carreira e cuidar de seu pai. Desejava ter estabilidade para
proporcionar a ele uma velhice melhor. Ele sempre dizia que não duraria muito e
que ela precisava se casar, ao que ela respondia que ele não se atrevesse a
deixá-la, porque a mãe já havia feito isso.
Reparando
nas pessoas que se dispersavam animadas com o momento que haviam presenciado,
ela caminhou tranquila pela noite fria de maio e não percebeu que estava
atrasada até entrar no carro e pegar o celular que havia deixado no banco do
carona.
Imediatamente
ela se lembrou do cordão de isolamento impedindo a passagem nas principais
avenidas da cidade e soltou um “Putz, estou ferrada”, enquanto dava partida no
Fusca 68, de cor branca, e fazia o retorno a fim de pegar a Via Dutra.
A Andréa vai cuspir fogo com mais esse
atraso, pensou, sabendo o quão frágil era sua situação no jornal. Ela
assumia que era desorganizada, mas não irresponsável. O fato é que tinha um pai
idoso e doente que dependia de seus cuidados. Costumava ficar acordada até
altas horas da madrugada com ele e por isso se atrasava, mas não podia dizer a
ninguém porque, mesmo sendo verdade, soaria como um impedimento ao cargo. O
jornal era respeitado na região, a equipe trabalhava duro com o que tinha nas
mãos, e Ângela queria muito fazer parte daquilo, mesmo com todos os seus
problemas.
Na
Via Dutra ela estava a 90 quilômetros por hora, o que era muito para o velho
fusca, que parecia gritar por socorro. Não
me abandone agora, amigão, dizia a ele, com medo de acabar provocando um
acidente caso o pobre veículo se desmontasse ali mesmo. A ferrugem cobria boa
parte de sua lataria e corroía sua pintura branca. Os assentos estavam ruins,
assim como as maçanetas. O medidor de gasolina não estava funcionando e ela
havia ficado na estrada na semana anterior por conta daquilo. Ouvindo o barulho
do motor, sabia que a qualquer momento ele a deixaria na mão. Isso nunca tinha
acontecido desde que o comprara havia dois anos, enquanto cursava a faculdade
de Jornalismo e trabalhava meio período em um escritório de contabilidade para
ajudar nos estudos. Aquele havia sido um tempo difícil, em que ela e o pai
gastaram todas as suas economias para manter a casa. No último ano, já sem
dinheiro, eles se endividaram. Francisco precisava de remédios, uma boa
alimentação e assistência médica constante. Ângela ganhava um salário mínimo
como estagiária, e ele ganhava um salário mínimo de aposentadoria. Eles viviam
apenas com esses dois salários que mal davam para passarem o mês, e o
empréstimo que ela havia feito no banco estava com juros sobre juros e já havia
virado uma bola de neve que ela não conseguia mais controlar. Agora estava sem
dinheiro, sem crédito na praça, com muitas dívidas, e precisando
desesperadamente de um emprego. Tentava ser otimista e manter a mente
tranquila, mas sabia que se não fosse efetivada no jornal só teria chance de
conseguir um emprego do mesmo nível em outra cidade maior e mais distante, onde
só o transporte consumiria boa parte de sua renda e muito do seu tempo. O Vale
Impresso era o único lugar onde ela poderia ganhar razoavelmente bem, ficando
perto de seu pai e, ainda de quebra, fazendo o que gostava. Era sua única
chance.
Com
a cabeça quente, assim que saiu da Via Dutra, ela agarrou o celular e ligou
para Malu.
— Alô — disse Maria
Laura Rangel, sua melhor e inseparável amiga.
—
Oi Malu, tudo bem?
—
Tudo, e você?
—
Eu estou uma pilha de nervos! – reclamou.
—
Por quê?
—
Porque estou atrasada para um compromisso importante. Vou conhecer o jornalista
com quem irei trabalhar durante a passagem do Papa pela região e já estou
causando uma péssima impressão. A Andréa vai me matar.
—
Calma, vai dar tudo certo. Você é ótima e ela sabe disso.
—
Sei – Ângela bufou. - Tão ótima que ela me emprestou para outro jornal que não
tem nada a ver com o nosso. Toda a nossa equipe vai estar lá fazendo matérias,
produzindo... enquanto eu fui emprestada. Com certeza isso é um mau sinal.
-
É nada – Malu retrucou. – Esta vai ser uma experiência única na sua carreira.
Você irá trabalhar com quem entende do assunto e terá a chance de aprender com
eles. Quem sabe até algumas portas não se abrem para você a partir deste
evento?!
Ângela sorriu, porque
Malu era uma boa amiga. Otimista incorrigível, ela sempre sabia o que dizer.
Malu era a filha
caçula de seis irmãos. Ela era loira, tinha olhos cor de mel, lábios grossos e
bem desenhados, e um corpo curvilíneo. Madura, era como uma irmã mais velha que
estivera ao lado de Ângela nos piores momentos, como nas vezes em que seu pai
enfartara, quando ele tivera um derrame, e na ocasião da morte de sua mãe.
Há pouco mais de dois
anos ela havia conhecido Carlos Rangel, um jovem simples de boa família que era
tão ou mais tímido que ela. O romance ficou só na troca de olhares por um
tempo, até que ele criou coragem e a chamou para sair. Os dois haviam se casado
em dezembro do ano anterior e ainda estavam no período de lua de mel, curtindo
um ao outro e se adaptando à nova vida.
Ângela não tivera
tanta sorte no amor. Bernardo, seu único namorado desde a adolescência, a
deixara após a morte da sua mãe, diante dos problemas familiares que ela
enfrentava. Diante de toda a correria que sua vida se tornara, no fim, achou
melhor que aquele relacionamento não tivesse ido adiante, pois lhe sobrara mais
tempo para cuidar do pai e se concentrar nos problemas que eles enfrentavam.
Depois de Bernardo
Ângela não quis se arriscar a ter nada sério com mais ninguém. Já fazia tempo
que não tinha nada, nem sério, nem não sério, com ninguém. Não tenho tempo para isso, dizia a si mesma quando pensava no
assunto. Felizmente sua vida era tão corrida que sequer tinha tempo de sentir
solidão. Tudo o que sentia era ansiedade e medo de não conseguir o trabalho de
que precisava tanto.
***
Presa a uma cancela e
esperando pela passagem de um enorme trem cargueiro, Ângela tentava não se
desesperar pelos vinte minutos de atraso. Cada vagão que passava parecia caçoar
dela com suas rodas pesadas rugindo em atrito com os trilhos.
— Por que essa
porcaria de linha férrea tem que cortar a cidade bem no meio? — desabafou
nervosa, ciente de que a culpa pelo atraso não era do trem.
O jornal ficava
naquele mesmo quarteirão, em um prédio de dois andares nas imediações da Praça
Conselheiro Rodrigues Alves, centro comercial de Guaratinguetá.
Andréa a aguardava e
ao olhar novamente para o relógio de parede da sala de reuniões, respirou
fundo.
Vinte
e sete minutos de atraso!
O jornalista à sua
frente estava impassível. Ele era jovem e dinâmico. Tinha olhos grandes e
escuros, assim como o cabelo liso, cujo comprimento passava metade das orelhas.
Chamava-se Marcos Andrade e, apesar de ter apenas vinte e seis anos, já
trilhava uma carreira de sucesso em um importante canal de comunicação de São
Paulo, o RSS News. Ele começara a carreira no jornal impresso do mesmo grupo e
atualmente trabalhava para a TV fazendo reportagens especiais.
O
presidente e fundador do grupo RSS, Roberto Simão, havia sido chefe de Andrea
por mais de dez anos e apoiado o projeto dela de montar o próprio jornal. Ele
era um grande amigo e por isso, quando pediu o apoio dela para sua equipe de
jornalistas — liderada por Marcos — ela concordou imediatamente, cedendo uma de
suas estagiárias para ajudá-los com o que precisassem.
Agora
começava a se questionar se havia escolhido bem, visto que Ângela poderia
estragar tudo.
—
Será que ela vem? – perguntou Marcos, ansioso por se recolher no hotel onde sua
equipe ficaria hospedada.
—
Não se preocupe, colocarei alguém mais responsável para assessorá-lo — ela
respondeu e pegou o telefone. Enquanto discava o número de outro funcionário,
Ângela entrou na sala, literalmente correndo, atraindo os olhares para sua
figura ofegante.
—
Chefe! — disse ela, deixando Marcos surpreso.
Deve estar havendo algum engano, essa garota
é jovem demais, pensou irritado. Ele não queria a assessoria de ninguém, na
verdade não queria nem ter ido ao interior. Tinha acabado de voltar do Mato
Grosso, onde havia passado a semana toda percorrendo estradas ruins para uma
série de reportagens sobre a malha rodoviária do Brasil. Estava cansado, com o
corpo dolorido e nem um pouco feliz de perder o fim de semana ali, naquele fim
de mundo, cobrindo a visita de um Papa. Mas não era todo dia que um Papa
visitava o Brasil, e Roberto havia lhe pedido pessoalmente que fizesse o
trabalho, deixando-o sem opção.
Enquanto
ele pensava no assunto, Andréa recolocou o telefone no gancho e encarou a jovem
com uma fúria controlada.
—
Chefe, me desculpe pelo atraso, mas eu tive um bom motivo — disse Ângela,
remexendo nervosamente em sua bolsa. Rapidamente ela começou a tirar coisas e mais
coisas e, por fim, despejou todo o conteúdo sobre a mesa, fazendo-os recuarem
para não serem atingidos. Encontrou a filmadora em meio à bagunça e entregou-a
à Andréa.
—
O que é isso?
—
Eu filmei a chegada do Papa – Ângela respondeu com entusiasmo. – Podemos tirar
algumas imagens da filmagem, e eu vou fazer um texto sobre o momento e...
—
Eu vou ver o que tem aqui — interrompeu Andréa —, depois digo o que você deve
ou não fazer. Você aguarda um minuto, por favor? — perguntou a Marcos. — Vou
checar isto aqui e em seguida cuidarei do seu problema.
—
Sem problemas — ele respondeu com uma voz grave e masculina, e pela primeira
vez Ângela olhou para ele. Andréa saiu e os deixou sozinhos.
Ângela
gostava de olhar as pessoas nos olhos, mas ao se deparar com os dele, grandes e
intensos, sentiu—se intimidada e desviou os seus.
—
Me desculpe por isso — disse a ele, tentando iniciar uma conversa e desfazer a
provável má impressão que havia lhe causado. — Você deve estar cansado e cheio
de coisas para fazer. Não achei que me atrasaria, mas bloquearam o caminho de
todo mundo para o Papa passar e...
—
Tudo bem — ele disse descontraído, começando a achar aquilo divertido. A garota
era maluca e tinha energia demais para entediá-lo. — Sou Marcos Andrade —
apresentou-se estendendo a mão.
—
Ângela Barros — respondeu ela apertando a mão dele.
—
Prazer Ângela.
—
O prazer é meu...
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