27 de junho de 2014

Primeiro capítulo - Cinco anos - Cristiane Broca

O Blog Eclética teve alguns imprevistos, por isso a postagem do capítulo está nesse blog.
A nossa Bienal Online está com tudo!!! Obrigada a cada um!!!

Você já conferiu várias entrevistas da autora e conheceu mais detalhes do livro, certo?! Agora você  vai poder ler o PRIMEIRO CAPÍTULO desse lindo romance. 

CINCO ANOS
 CRISTIANE BROCA

Capítulo 1


Era maio de 2007. Há apenas dois anos no mais alto posto da igreja católica, o Papa Bento XVI estava de visita ao Brasil para vários compromissos, dentre eles a canonização do primeiro santo nascido em terras brasileiras, Santo Antônio de Santana Galvão, popularmente conhecido como Frei Galvão.
            O pontífice desembarcou no país no dia 9 de maio e ficou hospedado no mosteiro de São Bento, em São Paulo. Após concluir os compromissos da capital, incluindo a missa de canonização do santo, o Papa embarcou rumo ao interior do estado para visitar as cidades de Aparecida e Guaratinguetá.
            Aparecida, famosa por possuir o maior santuário mariano do mundo, a Basílica de Nossa Senhora Aparecida, cuja imagem foi encontrada por três pescadores em 1717, estava em festa, assim como a vizinha Guaratinguetá, terra natal de Frei Galvão, onde o Papa visitaria uma organização social que trata dependentes químicos com foco no trabalho, convivência e espiritualidade, a Fazenda da Esperança.
            A imprensa se mobilizou toda para cobrir o evento também no interior.
            Ângela Barros era uma jovem de vinte e um anos nascida e residente em Aparecida. Recém-formada em Jornalismo, ela concorria a uma vaga na equipe do Vale impresso, jornal com sede em Guaratinguetá, onde estagiava. Sua concorrente direta à vaga era Lúcia Reis, uma jovem de vinte e dois anos, estatura mediana, cabelos castanhos curtos, um rosto bonito e olhos pequenos e redondos.
            O jornal tinha saída semanal e contava com uma equipe de nove funcionários fixos, mais as duas estagiárias que competiam para virar o colaborador de número dez. Sua proprietária era Andréa Albuquerque, jornalista com boa formação universitária e experiência adquirida na capital, que há oito anos havia realizado o sonho de lançar seu próprio jornal em Guaratinguetá. Ela tinha quarenta e três anos, olhos verdes e cabelo loiro com corte chanel, combinando perfeitamente com sua figura alta e esguia.  Era bonita, inteligente e mais rigorosa do que qualquer chefe homem que Ângela tivera antes. Sabia das dificuldades de se produzir um jornal de qualidade com pouco capital e uma equipe restrita, por isso levava o trabalho extremamente a sério e cobrava muito de seus jornalistas.
            Ângela e Lúcia, cada uma ao seu modo, eram boas, mas também tinham defeitos. No ponto de vista de Andréa, elas se completavam, pois enquanto Lúcia era organizada e confiável, Ângela era esperta e criativa. Os pontos negativos de Lúcia incluíam a falta de visão e capacidade de improvisação, coisas que Ângela tinha de sobra. Os problemas de Ângela eram sua desorganização e os atrasos constantes. Andréa era sistemática e prezava muito a pontualidade. Ela nunca havia trabalhado com alguém com tanto potencial e ao mesmo tempo tão crua quanto a jovem. Como não podia efetivar as duas e só tinha até o fim do mês para decidir, no momento estava ficando com Lúcia.
            Às 19h do dia 11 de maio, Ângela penteava os cabelos molhados em frente ao espelho. Á água escorria cada vez que a escova descia até as pontas, jogando respingos por todo o lado. Ela estava com pressa e, ao penteá-los sem o menor cuidado, arrebentava vários fios e agradecia a Deus por ter lhe dado um cabelo liso, mais simples de cuidar do que se fosse cacheado.
            Ela olhou de relance para a cama, onde a pequena bolsa de viagem a esperava com algumas peças de roupas, entre elas o terninho que usaria no dia seguinte. Vestiu sua calça jeans de lavagem clara, uma camiseta branca justa, calçou seu inseparável All Star azul-marinho e passou gloss nos lábios. Olhando para o espelho, julgou-se bonitinha em seus 1,70m de altura. Seu corpo era magro, porém não muito, pois tinha curvas acentuadas nos locais certos como o bumbum arrebitado, traço marcante das brasileiras. Ângela era definitivamente o estereótipo da mulher brasileira: bonita, alegre e batalhadora.
            Antes de sair ela ainda se deu conta de que precisava cortar o cabelo. A franja reta já estava na altura dos olhos, e o cabelo quase na cintura. Anotou mentalmente aquele compromisso para a próxima semana, pegou suas coisas e foi até a sala se despedir de seu pai. Estava propositalmente adiantada para seu compromisso porque queria fazer algo antes dele.
— Já vai, fia? — Francisco perguntou da forma carinhosa e interiorana que era acostumado a falar, ou, como ele mesmo dizia, caipira.
            — Já, pai, me deseje sorte — disse ela de forma parecida. Por ter estudado, seu vocabulário era bem melhor que o do pai, mesmo assim falava o “r” puxado como a maioria das pessoas do interior de São Paulo.
            — Boa sorte, minha princesa — desejou Francisco, sabendo que a filha teria muito trabalho por aqueles dias.
            — Obrigada. Vou ligar para saber se o senhor está bem e vou pedir à Malu que passe aqui para te ver enquanto eu estiver fora, está bem?
            — Não precisa incomodar a menina, deixa ela quietinha com o maridinho dela.
            — Mas, o senhor vai ficar bem?
            — Claro fia, eu tô bem hoje.
            — Então está bem. Te amo, pai.
            — Também te amo, fia.
            Ângela beijou o pai, pegou a filmadora que havia emprestado de um vizinho, colocou as coisas no carro e saiu, torcendo para não se atrasar. Não estava muito feliz pelo compromisso que a aguardava, mas precisava impressionar a chefe e não dar a ela motivos para se zangar, já que havia se atrasado duas vezes somente naquela semana.
            Cinco minutos depois de sair, parou o carro e caminhou em direção a um dos quatro portões da basílica, o mais próximo à sua casa. Ela procurou um bom lugar para ficar, fora do cordão de isolamento, de onde pudesse filmar a chegada do Papa à sua cidade natal.
Não demorou nada e dois helicópteros surgiram na escuridão. Em um deles estava o Papa. Eles aterrissaram no heliporto que ficava em um morro de frente para a basílica, que estava toda iluminada. Era uma cena linda de se ver, concluiu Ângela, observando a beleza imponente da igreja enquanto os sinos ecoavam pela atmosfera e uma música mariana embalava o momento. Apesar de ter nascido e morado a vida toda ali, ela ainda se surpreendia com a beleza daquela construção.
            Alguns minutos depois da descida do helicóptero o Papa surgiu, descendo a colina da igreja de papa móvel e acenando para as pessoas que se aglomeravam atrás dos cordões para vê-lo. Tais cordões atravessavam a cidade até o seminário Bom Jesus, onde ele ficaria hospedado em sua estadia em Aparecida. Foi tudo muito rápido e Ângela ficou entusiasmada com a experiência. Era um grande acontecimento para a cidade, que vive do turismo religioso, e para a região em geral. Quando o papa João Paulo II visitou Aparecida, em 1980, ela ainda não era nascida. Desta vez estava presenciando a história e, um dia, pensou, iria contar aos filhos. Não que pensasse no assunto o tempo todo. Queria ter uma família algum dia, mas a sua prioridade no momento era crescer na carreira e cuidar de seu pai. Desejava ter estabilidade para proporcionar a ele uma velhice melhor. Ele sempre dizia que não duraria muito e que ela precisava se casar, ao que ela respondia que ele não se atrevesse a deixá-la, porque a mãe já havia feito isso.
            Reparando nas pessoas que se dispersavam animadas com o momento que haviam presenciado, ela caminhou tranquila pela noite fria de maio e não percebeu que estava atrasada até entrar no carro e pegar o celular que havia deixado no banco do carona.
            Imediatamente ela se lembrou do cordão de isolamento impedindo a passagem nas principais avenidas da cidade e soltou um “Putz, estou ferrada”, enquanto dava partida no Fusca 68, de cor branca, e fazia o retorno a fim de pegar a Via Dutra.
            A Andréa vai cuspir fogo com mais esse atraso, pensou, sabendo o quão frágil era sua situação no jornal. Ela assumia que era desorganizada, mas não irresponsável. O fato é que tinha um pai idoso e doente que dependia de seus cuidados. Costumava ficar acordada até altas horas da madrugada com ele e por isso se atrasava, mas não podia dizer a ninguém porque, mesmo sendo verdade, soaria como um impedimento ao cargo. O jornal era respeitado na região, a equipe trabalhava duro com o que tinha nas mãos, e Ângela queria muito fazer parte daquilo, mesmo com todos os seus problemas.
            Na Via Dutra ela estava a 90 quilômetros por hora, o que era muito para o velho fusca, que parecia gritar por socorro. Não me abandone agora, amigão, dizia a ele, com medo de acabar provocando um acidente caso o pobre veículo se desmontasse ali mesmo. A ferrugem cobria boa parte de sua lataria e corroía sua pintura branca. Os assentos estavam ruins, assim como as maçanetas. O medidor de gasolina não estava funcionando e ela havia ficado na estrada na semana anterior por conta daquilo. Ouvindo o barulho do motor, sabia que a qualquer momento ele a deixaria na mão. Isso nunca tinha acontecido desde que o comprara havia dois anos, enquanto cursava a faculdade de Jornalismo e trabalhava meio período em um escritório de contabilidade para ajudar nos estudos. Aquele havia sido um tempo difícil, em que ela e o pai gastaram todas as suas economias para manter a casa. No último ano, já sem dinheiro, eles se endividaram. Francisco precisava de remédios, uma boa alimentação e assistência médica constante. Ângela ganhava um salário mínimo como estagiária, e ele ganhava um salário mínimo de aposentadoria. Eles viviam apenas com esses dois salários que mal davam para passarem o mês, e o empréstimo que ela havia feito no banco estava com juros sobre juros e já havia virado uma bola de neve que ela não conseguia mais controlar. Agora estava sem dinheiro, sem crédito na praça, com muitas dívidas, e precisando desesperadamente de um emprego. Tentava ser otimista e manter a mente tranquila, mas sabia que se não fosse efetivada no jornal só teria chance de conseguir um emprego do mesmo nível em outra cidade maior e mais distante, onde só o transporte consumiria boa parte de sua renda e muito do seu tempo. O Vale Impresso era o único lugar onde ela poderia ganhar razoavelmente bem, ficando perto de seu pai e, ainda de quebra, fazendo o que gostava. Era sua única chance.
            Com a cabeça quente, assim que saiu da Via Dutra, ela agarrou o celular e ligou para Malu.
— Alô — disse Maria Laura Rangel, sua melhor e inseparável amiga. 
            — Oi Malu, tudo bem?
            — Tudo, e você?
            — Eu estou uma pilha de nervos! – reclamou.
            — Por quê?
            — Porque estou atrasada para um compromisso importante. Vou conhecer o jornalista com quem irei trabalhar durante a passagem do Papa pela região e já estou causando uma péssima impressão. A Andréa vai me matar.
            — Calma, vai dar tudo certo. Você é ótima e ela sabe disso.
            — Sei – Ângela bufou. - Tão ótima que ela me emprestou para outro jornal que não tem nada a ver com o nosso. Toda a nossa equipe vai estar lá fazendo matérias, produzindo... enquanto eu fui emprestada. Com certeza isso é um mau sinal.
            - É nada – Malu retrucou. – Esta vai ser uma experiência única na sua carreira. Você irá trabalhar com quem entende do assunto e terá a chance de aprender com eles. Quem sabe até algumas portas não se abrem para você a partir deste evento?!
Ângela sorriu, porque Malu era uma boa amiga. Otimista incorrigível, ela sempre sabia o que dizer.
Malu era a filha caçula de seis irmãos. Ela era loira, tinha olhos cor de mel, lábios grossos e bem desenhados, e um corpo curvilíneo. Madura, era como uma irmã mais velha que estivera ao lado de Ângela nos piores momentos, como nas vezes em que seu pai enfartara, quando ele tivera um derrame, e na ocasião da morte de sua mãe.
Há pouco mais de dois anos ela havia conhecido Carlos Rangel, um jovem simples de boa família que era tão ou mais tímido que ela. O romance ficou só na troca de olhares por um tempo, até que ele criou coragem e a chamou para sair. Os dois haviam se casado em dezembro do ano anterior e ainda estavam no período de lua de mel, curtindo um ao outro e se adaptando à nova vida.
Ângela não tivera tanta sorte no amor. Bernardo, seu único namorado desde a adolescência, a deixara após a morte da sua mãe, diante dos problemas familiares que ela enfrentava. Diante de toda a correria que sua vida se tornara, no fim, achou melhor que aquele relacionamento não tivesse ido adiante, pois lhe sobrara mais tempo para cuidar do pai e se concentrar nos problemas que eles enfrentavam.
Depois de Bernardo Ângela não quis se arriscar a ter nada sério com mais ninguém. Já fazia tempo que não tinha nada, nem sério, nem não sério, com ninguém. Não tenho tempo para isso, dizia a si mesma quando pensava no assunto. Felizmente sua vida era tão corrida que sequer tinha tempo de sentir solidão. Tudo o que sentia era ansiedade e medo de não conseguir o trabalho de que precisava tanto.

***

Presa a uma cancela e esperando pela passagem de um enorme trem cargueiro, Ângela tentava não se desesperar pelos vinte minutos de atraso. Cada vagão que passava parecia caçoar dela com suas rodas pesadas rugindo em atrito com os trilhos.
— Por que essa porcaria de linha férrea tem que cortar a cidade bem no meio? — desabafou nervosa, ciente de que a culpa pelo atraso não era do trem.
O jornal ficava naquele mesmo quarteirão, em um prédio de dois andares nas imediações da Praça Conselheiro Rodrigues Alves, centro comercial de Guaratinguetá.
Andréa a aguardava e ao olhar novamente para o relógio de parede da sala de reuniões, respirou fundo.
Vinte e sete minutos de atraso!
O jornalista à sua frente estava impassível. Ele era jovem e dinâmico. Tinha olhos grandes e escuros, assim como o cabelo liso, cujo comprimento passava metade das orelhas. Chamava-se Marcos Andrade e, apesar de ter apenas vinte e seis anos, já trilhava uma carreira de sucesso em um importante canal de comunicação de São Paulo, o RSS News. Ele começara a carreira no jornal impresso do mesmo grupo e atualmente trabalhava para a TV fazendo reportagens especiais.
            O presidente e fundador do grupo RSS, Roberto Simão, havia sido chefe de Andrea por mais de dez anos e apoiado o projeto dela de montar o próprio jornal. Ele era um grande amigo e por isso, quando pediu o apoio dela para sua equipe de jornalistas — liderada por Marcos — ela concordou imediatamente, cedendo uma de suas estagiárias para ajudá-los com o que precisassem.
            Agora começava a se questionar se havia escolhido bem, visto que Ângela poderia estragar tudo.
            — Será que ela vem? – perguntou Marcos, ansioso por se recolher no hotel onde sua equipe ficaria hospedada.
            — Não se preocupe, colocarei alguém mais responsável para assessorá-lo — ela respondeu e pegou o telefone. Enquanto discava o número de outro funcionário, Ângela entrou na sala, literalmente correndo, atraindo os olhares para sua figura ofegante.
            — Chefe! — disse ela, deixando Marcos surpreso.
            Deve estar havendo algum engano, essa garota é jovem demais, pensou irritado. Ele não queria a assessoria de ninguém, na verdade não queria nem ter ido ao interior. Tinha acabado de voltar do Mato Grosso, onde havia passado a semana toda percorrendo estradas ruins para uma série de reportagens sobre a malha rodoviária do Brasil. Estava cansado, com o corpo dolorido e nem um pouco feliz de perder o fim de semana ali, naquele fim de mundo, cobrindo a visita de um Papa. Mas não era todo dia que um Papa visitava o Brasil, e Roberto havia lhe pedido pessoalmente que fizesse o trabalho, deixando-o sem opção.
            Enquanto ele pensava no assunto, Andréa recolocou o telefone no gancho e encarou a jovem com uma fúria controlada.
            — Chefe, me desculpe pelo atraso, mas eu tive um bom motivo — disse Ângela, remexendo nervosamente em sua bolsa. Rapidamente ela começou a tirar coisas e mais coisas e, por fim, despejou todo o conteúdo sobre a mesa, fazendo-os recuarem para não serem atingidos. Encontrou a filmadora em meio à bagunça e entregou-a à Andréa.
            — O que é isso?
            — Eu filmei a chegada do Papa – Ângela respondeu com entusiasmo. – Podemos tirar algumas imagens da filmagem, e eu vou fazer um texto sobre o momento e...
            — Eu vou ver o que tem aqui — interrompeu Andréa —, depois digo o que você deve ou não fazer. Você aguarda um minuto, por favor? — perguntou a Marcos. — Vou checar isto aqui e em seguida cuidarei do seu problema.
            — Sem problemas — ele respondeu com uma voz grave e masculina, e pela primeira vez Ângela olhou para ele. Andréa saiu e os deixou sozinhos.
            Ângela gostava de olhar as pessoas nos olhos, mas ao se deparar com os dele, grandes e intensos, sentiu—se intimidada e desviou os seus.
            — Me desculpe por isso — disse a ele, tentando iniciar uma conversa e desfazer a provável má impressão que havia lhe causado. — Você deve estar cansado e cheio de coisas para fazer. Não achei que me atrasaria, mas bloquearam o caminho de todo mundo para o Papa passar e...
            — Tudo bem — ele disse descontraído, começando a achar aquilo divertido. A garota era maluca e tinha energia demais para entediá-lo. — Sou Marcos Andrade — apresentou-se estendendo a mão.
            — Ângela Barros — respondeu ela apertando a mão dele.
            — Prazer Ângela.
            — O prazer é meu...

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